Secos e Molhados (1973)
Olá amigos e amigas do blog AHD, tudo bem com vocês? Espero que sim, hoje eu Flávio Oliveira, falarei um pouco sobre um dos maiores fenômenos da ‘Música Popular Brasileira’, que é o ‘Secos e Molhados’. Falar deste disco que abre a carreira do grupo é muito prazeroso, pois, além de estar inserido em um contexto histórico bem ‘barra pesada’ (por conta da Ditadura), o disco rompe com alguns conceitos conservadores impregnados na sociedade brasileira. Como vocês podem perceber esse álbum não é brincadeira, ele provocou alegrias e também muitas reações adversas. Então, bora pro disco?
O que se pode afirmar antes do lançamento do disco da banda é que o contexto político-social no país era pesado. Em 1970 o Brasil passava por um dos momentos mais terríveis de sua história. A Ditadura Militar estava no auge em relação a censura (E há quem defenda esse regime!), perseguindo grupos políticos contrários ao pensamento vigente, bem como privando artistas em geral de expressarem sua arte (Lembra um pouco os dias de hoje!? Pensem nisso). Em meio a este desastre social, temos o jovem João Ricardo, rapaz lusitano que se erradicou no Brasil e que tinha em mente criar um projeto que buscasse expressar não só musicalidade, mas também poesia. Com a fusão destes elementos surgiria a essência do projeto Secos e Molhados, que estava prestes a surgir. João é filho do poeta João Apolinário, sendo essa uma das justificativas para suas inclinações poéticas, estas que fizeram com que seu caminho se cruzasse com o de Ney Matogrosso, a ponte entre os dois foi feita pela amiga Luhli. Nessa época Ney vivia da arte, fazendo teatro e vendendo artesanato – atividades típicas dos jovens da época.
Com sua voz extremamente aguda e com uma belíssima atuação no palco, Ney Matogrosso agradou João Ricardo e ambos formaram um grupo no qual o lusitano já tinha todas as canções compostas. Vale citar que antes do encontro com Ney, João já havia tocado com diversos instrumentistas, mas a química só rolou mesmo com seu futuro parceiro de banda. E o nome Secos e Molhados foi dado por Ricardo, certo dia ele estava em Ubatuba e viu uma mercearia com o nome ‘Secos e Molhados’, a partir daí resolveu usar expressão como nome da banda. Usando suas próprias palavras o mesmo explicou: é um nome que não determina coisa alguma, que se abre para todos os gêneros.
Os novos colegas começaram a se apresentar em boates e eram acompanhados pelos músicos que posteriormente gravariam o primeiro disco do grupo junto com eles: Marcelo Frias na bateria, John Flavin na guitarra e Willi Verdaguer no baixo – músico argentino, e um dos melhores que ouvi até hoje. As apresentações começam a chamar a atenção do público em geral, atiçando mais a curiosidade de vários expectadores e por conta disso, o empresário Moacyr do Val resolve empresariá-los e apresenta a banda para a gravadora Continental.
Antes mesmo de entrarmos no mérito do disco, farei algumas observações sobre as pinturas que os integrantes do Secos e Molhados faziam no rosto antes de subir ao palco. Existe uma lenda em torno disso, muitos afirmam que as pinturas utilizadas pelo grupo influenciou a banda americana Kiss. Existem até depoimentos no Youtube no qual Zé Rodrix – que tocou piano na gravação do álbum do Secos e Molhados – afirma ter ouvido rumores sobre empresários americanos assistirem a apresentação da banda e gostarem da ideia das pinturas, e posteriormente tentaram levar essa ideia para o rock. Na minha concepção isso foi um mero mal entendido, pois analisando o contexto do rock, em meados dos anos 1960 havia um cantor chamado Arthur Brown que usava e abusava de performances artísticas no palco e também de pinturas em seu rosto como forma de expressar a sua arte – disponibilizarei ao fim desta matéria um link com uma performance de Arthur, ai você caro leitor poderá tirar suas próprias conclusões.
Mas deixando de lado as polêmicas, vamos ao que interessa. O primeiro álbum do grupo foi lançado em 1973 pela gravadora Continental, o disco é a união que envolve uma extensa qualidade musical aliada à poesia de Manuel Bandeira, João Apolinário, Vinícius de Moraes e também algumas canções folclóricas tradicionais das culturas portuguesa e brasileira. O disco começa com uma canção memorável que é lembrada até os dias de hoje, Sangue Latino – faixa aliás que ganhou homenagem do Titãs na música Eu Não Aguento -, que mesmo sendo uma música de curta duração, já deixa o ouvinte de cabelo em pé com a tamanha ousadia da voz de Ney aliada aos violões de doze cordas e as fortes batidas que envolvem a canção. Posteriormente temos a faixa, O Vira, mais um clássico, uma canção inocente e que não tem nada haver com homossexualidade como muitos presumem quando ouvem a música pela primeira vez. Os integrantes do grupo afirmam que a canção nada mais é que uma união dos elementos folclóricos lusitanos.
O que mais chama atenção em todo o álbum é a voz de Ney, com toda aquela entonação aguda espontânea, percebe-se que não é forçado, sendo assim uma das características que mais chamam atenção do ouvinte.
Outra faixa que merece destaque é Patrão Nosso de Cada Dia, que mostra a dura realidade dos trabalhadores brasileiros, que lutam por condições melhores de trabalho e que chegam ao ponto de doar a sua “alma” ao patrão – na época isso foi uma afronta para os militares, causando diversos desconfortos. E já que estamos falando do desconforto junto ao regime militar, vale citar que o fato da banda se vestir com trajes chamativos, meio andrógenos foi motivo de censura imediata dos órgãos da época. Vasculhando alguns vídeos na internet, encontrei um em que Ney Matogrosso fala das constantes ameaças que ele sofria durante a ditadura, os militares alegavam que o cantor era uma personalidade obscena para a família tradicional brasileira e que ia contra os valores morais cristãos. Portanto, perceba caro leitor, o quanto a liberdade de expressão era completamente afetada com esse tipo de governo.
Mais uma faixa que queria destacar é Assim Assado, uma canção que nitidamente aborda temas de preconceito racial, o guarda Belo é vangloriado ao querer o velho “assim assado”, pela sua cor etc. Isso é um retrato fiel do que a juventude brasileira vivia, por isso, considero esse disco como um patrimônio histórico de nosso país. E para encerrar, temos um dos momentos mais vibrantes e emocionantes do disco, a canção Rosa Hiroshima, que foi uma adaptação feita a partir de um poema de Vinícius de Moraes. Acho que não preciso falar mais sobre esse disco, não é!?
Vale muito a pena observar todo o conceito deste disco, desde a parte sonora da banda até a capa, aliás, a capa do disco nos mostra uma clara alusão ao regime militar, que ‘queria a cabeça de todos’, mostrando que o Brasil vivia tempos sombrios.
No Rock In Rio deste ano (2017), Ney voltou a participar do evento e sua apresentação foi junto a banda Nação Zumbi. Desde 1974, Ney evitava se envolver em qualquer tipo de evento que tivesse relação com o projeto ‘Secos e Molhados’ ou participar de algum revival no qual poderia ter a participação dos ex-integrantes da banda, João Ricardo e Gerson Conrad. Por conta de tudo isso, o palco Sunset recebeu uma das apresentações mais esperadas do Rock in Rio, com direito a ingressos esgotados, e em vários tabloides repórteres da área musical que cobriram o evento qualificaram o show como fantástico.
Eu recomendo esse álbum que é um dos melhores da MPB, um disco com conceito musical, com vocais extremamente ousados, com músicos de extrema virtuosidade e de um lirismo poético absurdamente genial. Quem ouvir com certeza não vai se arrepender.
Abraços pessoal, e até a próxima!
Faixas do Disco
1 – Sangue Latino
2 – O Vira
3 – O Patrão Nosso de Cada Dia
4 – O Amor
5 – Primavera nos Dentes
6 – Assim Assado
7 – Mulher Barriguda
8 – El Rey
9 – Rosa de Hiroshima
10 – Prece Cósmica
11- Rondó do Capitão
12 – As Andorinhas
13 – Fala
Ouça o primeiro álbum do Secos e Molhados na íntegra!
Assista Ney Matogrosso e Nação Zumbi interpretando a faixa ‘O Amor’ no Rock In Rio 2017